Aquele pintor de casas levava sempre uma escada à tiracolo. Uma escada larga, articulada, de madeira e que alcançava dois metros e meio de altura. Não era uma escada qualquer, pois ela foi elaborada por seu avô, também pintor de casas. Depois, foi passada para seu pai, que também exercia esta mesma profissão. E agora, era dele. E ele cuidava com todo carinho, conforme lhe foi ensinado pelos dois. Passada de geração para geração, assim como seu nome, Almiro Neto, tinha um carinho grandioso por aquela escada. Quem o via pintando as paredes das casas reparava em sua roupa cheia de tinta mas também na sua escada impecável, sem nenhum respingo, protegida por algumas camadas de verniz.
Almiro Neto já tinha passado dos cinquenta a muito tempo e sua tristeza maior era saber que não teria um herdeiro para a escada que havia sido criada pelo seu avô. A humildade, a generosidade, a honestidade com que trabalhava e com que vivia, também eram herança de sua família. Mas isso ele sabia que levaria com ele, saberia que estaria seguro e que isso ninguém lhe tiraria. Mas, com a escada, o que faria?

Não queria trabalhar muito além daquela idade. Já estava perto dos sessenta. E por mais difícil que fosse, teria que escolher o que fazer com aquele bem material. Pintava desde os dez anos de idade. Seu pai lhe dizia que tinha sido assim que ele também aprendeu. Desde essa idade já sabia dar valor aos sentimentos e também às coisas valorosas. Aquela escada não era uma simples escada. Havia três mãos de gerações gravadas nela. E por ter sido feita com amor e usada com carinho e dedicação pelos três, a escada tinha alma. 

Nesse dilema todo, Almiro Neto foi contratado, no dia do seu sexagésimo aniversário, para pintar uma escola de educação infantil. Sentia a energia das crianças latejando entre as paredes que recebiam as novas tintas de cores vibrantes. E assim como as paredes alvas tomavam novas cores, o espírito de Almiro foi retomando também sua cor e recebeu uma inspiração.

No dia da última mão de tinta na escola, Almiro olhou para a escada, aquela escada de madeira que não tinha nem um respingo de tinta, e a agradeceu. Não pensou duas vezes depois. Tirou a madeira que unia as articulações, abriu mais o ângulo para não chegar a uma altura tão alta, e pregou-a no quintal da escola que ainda não tinha recebido nenhum brinquedo. Com as tintas que tinham sobrado, deixou a escada colorida para que as crianças brincassem nos intervalos de aula.

Após aquele ato, foi para casa, tranquilo, gozar da sua aposentadoria, sabendo que uma nova criança trocaria novas e boas energias com aquela escada especial. 

Assim, com um novo objetivo na sua vida útil, a escada poderia galgar mais degraus na sua evolução por diversas gerações

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4 respostas

  1. O texto conjurou imagens e emoções de forma muito cristalina. Admiro a capacidade de contar uma história com esse nível de profundidade em tão poucas linhas. Escrever dessa forma é um dom cada vez mais raro. Quase pude tocar, sentir a escada. Meus parabéns ao autor! Vou procurar saber mais sobre o seu trabalho.

  2. Parabéns pelo texto, a vida é uma caminhada feita de ciclos, em cada um deles deixamos a marca do conteúdo que carregamos. Tem pessoas que servem de degrau para levar outras ao passo seguinte. São àquelas que fazem a vida valer a pena.

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Fábio Granville

Fábio Granville

Fábio Granville, 43 anos, poeta, professor, palestrante espírita e escritor. Autor do livro "A gente se comporta melhor na calmaria quando já passou por tempestades" pelo selo página Nova.