Em uma tarde tranquila de segunda-feira, Andão, como de costume, ia com seu veículo de trabalho cada vez mais pesado, catando recicláveis. Era o fardo que lhe cabia para honrar compromissos de aluguel de uma edícula e alimentação com a esposa e três filhos. Iniciava a sua jornada ao raiar do dia e só retornava ao cair da noite.
Andão, com trinta e dois anos de idade e aparentando ter mais de quarenta, mãos calejadas, mal sabia assinar, sonhava dar uma vida melhor à família. Sua persistência lhe dava ânimo e vigor para puxar diariamente o pesado carrinho. Ao vender o material arrecadado aliviava suas costas e chegava em casa satisfeito com a féria.
Por vezes, sequer algumas moedas tinha para um café na rua, mas não se importava. Em primeiro lugar seus filhos — pensava. Quando a fome apertava, parava em frente a algum bar, onde aguardava a generosidade de algum conhecido para lhe doar um lanche.
Sensato, não abusava da bondade alheia. Revezava suas paradas, olhava para o Céu, sentia-se digno, recompensado, saudável e com coragem para enfrentar esse trabalho.
Como em toda segunda-feira, o carrinho ficou excessivamente lotado mais cedo, mas lá pelas quatro horas, ainda sem ter se alimentado, Andão se dirigia ao comprador de sucatas quando atendeu a uma chamada no velho celular que ganhara em troca do serviço de ajudante de pedreiro, logo ao desembarcar na rodoviária com a esposa prestes a dar à luz pela primeira vez.
Antes mesmo de identificar a ligação e sem dar conta da ladeira íngreme que começou a descer, o carrinho aumentou a velocidade, e por mais que tentava frear no asfalto quente, nem seus tênis tampouco os pedaços de pneus usados para frenagem foram suficientes. A ladeira é travessa de uma avenida movimentada, onde havia começado o rush vespertino de caminhões que vêm do Porto de Santos com destino à capital e ao interior de São Paulo. Andão mal conseguia manter o rumo do carrinho, obrigando-se a soltá-lo para não ser atropelado, no entanto, num piscar de olhos o inevitável aconteceu.
Na avenida trafegava um grupo de motoqueiros e motociclistas em meio aos carros e caminhões que obedeceram naturalmente ao bloqueio do semáforo, enquanto Andão continuava em pânico correndo atrás do carrinho desgovernado que parecia levitar no asfalto.
Além dele, transeuntes também gritavam e gesticulavam em alerta para avisar sobre o perigo iminente, momento em que um motoqueiro arqueado sobre o guidão entrou abruptamente em cena, furando o sinal vermelho em alta velocidade na faixa exclusiva para ônibus, táxis e veículos oficiais.
O carrinho entrou na avenida e incontinenti ao impacto com a moto, todos presenciaram a chegada de policiais em viaturas que perseguiam o insano fujão. Na contramão da legalidade teve a vida ceifada.
Andão, sentindo-se culpado pelo infortúnio, teve, para seu alívio, o reconhecimento oficial que tal tragédia era já coisa anunciada, desde o momento em que o finado decidira ingressar no crime. Veio então o momento dele pensar no comprometido sustento da sua família.
Curadoria: Lourenço Moura
12 respostas
Ótimo texto, bem realista…
Muito grato por ter lido. O vosso comentário, Escritora Kerima, é um incentivo para continuar.
As vidas à margem da sociedade se encontram na morte. Parabéns!
Escritor Anthony, excelente reflexão. Muito grato.
Ótimo texto.parabens Clayton 👏👏👏
Agradecido, Escritora Virgínia. O vosso carinho é muito importante.
Gostei muito Clayton! Principalmente do final surpresa.
Oi Escritora Maria Neta, dois personagens e um final trágico. Venceu o honesto. Muito grato.
Excelente!!! Parece que sentimos o frio na espinha aguardando o impacto!
Parab´ens!
Muito grato Escritora Fernanda Sanson. Consegui atingir a vossa sensibilidade. Fico feliz.
Um triste e notória realidade brasileira.
Consequência da legislação branda.