Naquele dia, eu não precisaria cozinhar. Iríamos jantar fora.

Busquei uma roupa e arrumei os cabelos.

Supostamente atrasada, saí do quarto. Ao me ver, ele se virou em direção à porta, resmungando. Da sua boca não saiu uma palavra inteira, só interjeições. Nunca fora de falar muito.

No restaurante, ele fez o pedido, comeu, palitou os dentes como de costume e, depois de massagear a barriga estufada, verbalizou:

— Enfim, comida de verdade!

Disse-o com todas as palavras completas, com pausas e usando a exclamação. Entraram em mim, entristecendo cada músculo da minha face, derrubando meus ombros e, por fim, ficaram presas em algum lugar dentro da minha cabeça.

Depois desse jantar, a cada refeição que lhe servia, eu baixava os olhos e lembrava aquelas palavras presas em mim enquanto ele se satisfazia em silêncio. Por vezes soltava uma interjeição que não dava para entender. E eu, bem, eu… Não importava.

 


Curadoria: Lourenço Moura


Foto de Kat Jayne no Pexels

24 respostas

  1. Parabéns minha querida amiga, amei seu texto você e uma és crítica nata! Sempre surpriendente muito suscesso Tais, um grande abraço

  2. Tenho pena da moça, que não percebe que não precisa viver assim. Homens idiotas sabemos que tem aos montes, pessoas que dizem o que vem à boca também.
    Em casa cozinhamos os dois, eu a sirvo e ela me serve, nem todos os dias está boa a comida, porém, amor e respeito temos sempre.

  3. Ta ta gente que conhecemos que estão na pele dessa mulher… tanta gente que conhecemos que age como este homem. Literatura também é denúncia. Parabéns pelo texto, Tais!

  4. Delicadamente, a autora retrata uma dura realidade psicológica de tantas mulheres.
    Parabéns! O olhar da artista revelando com sutileza as pedradas da vida cotidiana.

  5. Infelizmente essa é a realidade de muitas pessoas, fazem com amor e não recebem reconhecimento, resaltando que se deixar de fazer, recebem críticas.
    E em silêncio continuam se doando aos insensatos…

  6. A sensibilidade da personagem aflora através das palavras da autora. Sim, é bem verdade que existem várias e várias pessoas na mesma situação. Ao ver escrito com tanta elegância e sutileza é impossível não criar empatia pela protagonista que sintetiza a voz de tanta for e resignação. Muitas das vezes as pessoas se sentem assim, frustradas pela indiferença e injustiça com que sempre se julga vítima e muitas das vezes é a cruel realidade. Parabéns Tais, é um conto magnífico e esplendoroso e que traz a realidade sem o eufemismo lírico. O mais triste é entender que pode ser mais real do que o necessário.

  7. Taís Oya, teu texto representa o feminino milenarmente submetido à indiferença – não raro, à violência física e/ou emocional – de um patriarcalismo misógino que ainda, lamentavelmente, está presente nas sociedades contemporâneas. Parabéns por esta “fala” de rebeldia!

  8. Parabéns pelo texto, Tais! É admirável sua delicadeza nas palavras para abordar um assunto tão atroz quanto a violência psicológica presente em tantas casas.

  9. Um texto que retrata um fato que, infelizmente, ainda acontece no cotidiano de muitas mulheres do nosso tempo e, às vezes, dentro de nossas famílias ou bem próximo de nós, onde as mulheres se deixam aprisionar sustentadas em seus porquês.

  10. Lindo texto Tais! Em poucas palavras consegue tratar com tanta sensibilidade a dureza nas relações ditas amorosas. Parabéns!

  11. Um bom conto que, infelizmente reflete a realidade de muitos casamentos. E não só. Isso existe também entre outros graus familiares, mães e filhos, por exemplo. Eu desejo força a todas as mulheres! Aliás a qualquer ser humano que se deixa substimar e usar. A exploração do ser humano, embora em maior grau direcionado à mulher, também existe em relação ao homem. Muitos são maltratados e deixam-se maltratar. Pelo mesmo motivo das mulheres; medo! Aqui no Canadá, onde vivo isso existe muito. Eu, como mulher, defendo o respeito ao ser humano.

  12. Ao terminar a leitura dá uma vontade de segurar essa moça num abraço e dizer: Menina, você importa! Parabéns pelo texto!

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SANDRO BIER

Sandro Bier é editor, escritor, criador do canal Café do Escritor (2015) e dos selos Página Nova e EntreCapas. Em mais de 20 anos como editor, descobriu sua missão de vida: auxiliar pessoas a descobrirem seu potencial e despertá-las por meio da escrita. Ao guiá-las nessa jornada, já auxiliou inúmeros autores independentes a publicarem seus livros e se tornarem escritores. Em 2022, publicou o seu primeiro livro, O Alívio das Palavras: A jornada do pensamento à escrita, pelo seu selo EntreCapas. Em 2023, publicou seu segundo livro, Publique o seu próprio livro: O Guia Essencial para Produzir e Publicar um Livro Independente.