Despertei com o barulho e achei que a cama da minha mãe tivesse quebrado. Corri para socorrê-la e mais um baque veio da porta da cozinha que quase caiu por cima de mim.

Olhos arregalados, fixos na imagem do meu pai à frente: cabelos desgrenhados, camisa com um lado pra fora da calça, baba escorrendo pelo canto da boca, falava com voz rouca e trôpega, soprando no ar um cheiro que eu já conhecia.

Voltei ao quarto encontrando meus irmãos já de pé. Os fiz pular a janela e voltei à porta. Minha mãe, já vindo ao nosso encontro, me empurrou para dentro encostando a porta, numa barreira, enquanto fugíamos. Fomos o mais longe que conseguimos e sentamos embaixo de uma árvore à beira do caminho.

Já acostumada a tantas fugas nas madrugadas, minha mãe não esquecera o cobertor grande que servia para aquecer-nos, a mim e aos meus irmãos durante as noites frias. Acomodamo-nos e tentamos dormir, mas, o medo e a vergonha de sermos flagrados em nossa miséria tão exposta nos impedia de descansar. Esperamos umas duas horas e voltamos.

Em um canto da cozinha, jogado, no seu sono inquieto, meu pai roncava alto. Nós o puxamos pelos braços e o deitamos com cuidado na cama.

—  Mãe! Vem dormir com a gente. — chamei baixinho.

Quando acordei, minha mãe mexia nas latas de mantimentos na cozinha. Disfarçou para enxugar uma lágrima.

— Filho, pegue uns galhos de cidreira!

Ela fez o chá e tomamos com duas bolachas para cada um.

— Mãe! E as suas?

— Estão guardadas filho. Vou esperar seu pai acordar.

— Mas ele vai demorar, mãe! Coma logo!

Disfarçando outra vez, ela foi ver o pai no quarto.

 


Curadoria: Lourenço Moura


Foto de Rene Asmussen no Pexels

30 respostas

  1. Um texto muito triste e ao mesmo tempo emocionante, que descreve tudo que acontece em muitos lares, parabéns 👏👏👏👏

  2. Realismo, tão forte que faz a imaginação da gente reproduzir cada frase em uma cena. Parabéns Neta pelo seu trabalho , dá para notar a paixão pela escrita.

  3. Infelizmente não se passa apenas no Brasil. Lendo este e outros contos por aqui, reforço a opinião que tenho sobre a importância do escritor no mundo. Gratidão a todos os que tão bem desempenham esse papel. Grata Maria Neta.

  4. Muito bom e realista. A professora Maria é espelho para leitores e escrifores dos nossos dias. Dias esses nos quais observamos a carência de escritos estruturados e do incentivo à leitura. Parabéns professora. Fantástico!

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *