Para isso?

Minha cara

Escrevo-lhe para saber como estás.

Lembra-se da última vez em que estivemos juntos?
Você estava bem, sentindo-se muito livre, assim como eu.

Percebia o ar em nossas narinas, ar que quase tocávamos, tal a reciprocidade de vida que ele tinha conosco na ocasião em que tivemos momentos tocantes.

Tocante com o que parecia que ouvíamos na ocasião. Um som que nos rondava e me sabia como uma trilha sonora para nossas vidas. Tudo parecia colocado em uma pauta que líamos juntos, nota por nota, silêncio por silêncio. Tecendo reciprocamente a tez de cada um.
Caminhamos tranquilamente ao longo dos lagos.
Ouvíamos e víamos toda a vida ao redor.

E o céu? Ah, o céu!
Aquele que hoje sabemos não é azul – sendo apenas uma questão de comprimento de onda mais curto -, mas que nos leva muito longe, quando nos abraça tornando a luz mais doce e envolvente, naquele momento em que nos sentíamos. E era azul.

Andar por ali foi daqueles instantes que preenchem uma existência. Mas não o andar só, e sim andar com quem é parte de si, que até dá a impressão der ter saído de seu próprio ser.
Andar sobre uma grama e folhagens com flores nos dando os mais inebriantes aromas.
Andar sem buscar endereço certo, apenas ir.

Com aquele destemor que só uma boa companhia pode nos dar.
O saber que pode-se ir em frente porque um ao outro bastam-se.
Elucidam-se, contorcem-se, enredam-se.
Nem digo que fossemos unha e carne, porque mais carne com carne. Carne que sentia tudo em volta, como a brisa que acariciava os corpos.

E aquele momento em que a carne sentia a ausência de algo interno.
Preencher a carne nem era tão imprescindível assim. E eu só observei seu movimento, como se ouvíssemos algo. E eu livre, solto. E você livre, solta. E você era só ouvidos. Mas, não só para mim. Apenas à alguns sibilos que pairavam.

Por isso tudo, depois de tanto tempo, faço-lhe apenas uma pergunta:
Se já tinhas tudo, porque entre tantas frutas fostes escolher e comer exatamente a maçã, Eva?

Do seu, A.

CARTA PARA CORA

CARTA PARA CORA

Cora,
te escrevo da terra vermelha dos dias,
onde os rios correm apressados,
mas as palavras, como tuas,
preferem demorar-se nos quintais.

Fizeste do chão batido um livro,
da pedra rude, um abrigo de versos,
e das miudezas da vida,
um relicário de eternidade.

Diz-me, Cora,
como foi semear poesia
entre tachos de doce,
bordar esperança no pano gasto do tempo,
sem nunca temer as rugas no rosto
que só a vida bem vivida sabe dar?

Tua pena, mais forte que o fado,
não escreveu para salões dourados,
mas para as mãos de quem planta,
de quem fia e desfia os dias,
tecendo histórias à luz do fogão.

E eu, aprendiz tardio de teus silêncios,
te escrevo para dizer
que tua casa de portas velhas
ainda abriga sonhos novos,
e que teus versos,
colhidos com as mãos da infância,
florescem em cada esquina
onde uma mulher ousa existir
sem pedir licença ao tempo.

Com gratidão,
um viajante dos teus versos.

O teu esforço

Naquele tempo, eu ainda não entendia que todo o Homem nasce escravo de algo ou de alguém. Crescia segura no teu apoio, sem perceber que, sem querer, também te acorrentava.
Não sabia como analisar as regras do jogo a que a vida nos sujeita. Perdia-me a olhar as tuas mãos cansadas, que, no pano, corriam e se entregavam ao ponto combinado entre a linha e a agulha da máquina de costura. Não percebia que essas mãos carregavam histórias mais significativas do que toda a História que eu aprendia na escola.
Entregavas-te livremente à servidão para que eu pudesse entregar-me à fantasia e tivesse o direito de sonhar. Permitiste a minha ingenuidade para que minha infância fosse fértil.
Eu não entendia que o duplo sentido nos teus ditados populares e conselhos era um desafio, um incentivo para que eu lesse a meninice que nunca tiveste. Naquela hora calma, quando, já pronta para dormir, lançava um último olhar à tua figura sentada, não reparava que te preparavas para enfrentar um longo e silencioso serão. Ignorava que já tinhas ultrapassado todos os limites das tarefas que alguém pode suportar. Durante a noite, acordava levemente com o som da máquina de costura e adormecia de novo, tranquila, com a tua imagem no andar de baixo.
Conhecia o movimento das tuas pernas inchadas pelo cansaço. Os pés empurravam o pedal da máquina, a correia de cabedal girava, e a roda fazia a agulha penetrar o tecido com um lamento metálico. Sabia que sentirias, por pouco tempo, o descanso da tua cama e que serias a primeira a interromper o silêncio da casa, embrulhada no teu xaile madrugador
.Eu, curiosa como sempre, quando apanhava a máquina a descansar, mal chegando com os pés aos pedais, tentava experimentar a sensação de como seria estar no teu lugar.
Com toda a paciência, ensinaste-me e eu aprendi, mas nunca consegui fazer como tu, com a mesma disciplina com que te sujeitavas.
Hoje sei que viraste muitas vezes a tua existência do avesso para que eu me atrevesse a crescer. Nem sequer reparei na tua idade avançada, quando, mais tarde, me pedias:
— Enfia a linha na agulha. Já me cansa a vista…

Trinta anos após a tua partida, continuo a amar-te.

Gratidão, avó.

Carta para Ana, pelo seu legado histórico.

Ana,

Vou falar de mulher para mulher, afinal, nos tornamos íntimas embora exista uma distância cronológica considerável entre nós.

Você marcou a minha vida e de muitas gerações antes da minha. A mesma dor que gerou em você uma marca pra sempre, é sentida por muitas mulheres até hoje, mas a melhor marca sua foi encontrar a cura, e é sobre isso que eu quero falar.

Eu me inspiro em você para solução de muitas outras coisas na vida, e isto faz de você uma mulher inesquecível. O seu legado perpetua, seu nome tem uma marca na vida de cada mulher que, um dia, teve o coração ferido, os olhos embaçados pelas lágrimas e a voz embaraçada pelo grito atravessado na garganta.

Você se sentiu preterida pelo seu marido, esquecida por Deus, ignorada por muitos, foi confundida como uma histérica, sem noção e até com uma alcoólatra, repudiada e indesejada em certos lugares, e foi ali que encontrou a cura, e criou referências.

Você guardava uma dor silenciosa, e esse seu legado de fé na oração secreta, ecoou lá no céu, gerando o profeta Samuel. E com isto, Ana, você nos ensinou que há momentos em que não cabem intermediários, é conexão direta entre você e Deus. Reclamar gera desesperança, abala a autoconfiança, pode ampliar a ferida e até aumentar a dor.

Também aprendemos com você, Ana, que toda dor tem um nome, muitas vezes disfarçado nas justificativas alheatórias, como fuga de uma realidade cruel, incompreendida.

Por isto nesta carta, eu quero em nome de todas as mulheres, dizer o quanto você é admirada pelo seu exemplo de fé, resiliência, e confiança no poder de Deus, para transformar pranto em alegrias.

Vou me lembrar de você todas as vezes que doer em mim, a falta de algo que traga significado na vida, e me lembrar, que esse vazio tem um nome, que só é conhecido por você e Deus, e só Ele é capaz de preencher quando for procurado no secreto.

Por fim, você nos ensinou que toda mulher carrega uma mensagem de amor que vai além se si mesma.

Com afeto.

Regina Célia da Silva Duarte.

Contato: @pensebemvaalem

Escrevo-lhe agora

Paris, 15 de abril de 1956.

Prezada colega,

Tive que viajar às pressas e não pude me despedir, avisaram-me que mamãe teve uma moléstia séria, tomei o primeiro trem para Paris no dia seguinte.

Escrevo-lhe agora para dar notícias e agradecer o chá, também a conversa sincera sobre o meu novo livro. Os conselhos serão seguidos, asseguro-lhe, especialmente aquele em que a senhora falou, entre uma mordida e outra do petit four feito pela senhorita Macy, que “quando reescrevemos, o mais importante é cortar o que não faz parte da história”. E a senhora sorriu ao dizer que era desnecessário falar “delicioso” para aquele petit four.

Os dias em Londres foram edificantes para mim, as aulas de literatura inglesa em Cambridge abriram portas, porém, nada foi mais significativo do que o seu parecer de como devo conduzir a investigação nas próximas edições da tetralogia. Marcou-me deveras o palpite em que a senhora apontou a detetive como uma pessoa bastante passional, sanguinária, e pouco técnica. Para ser sincera, não havia percebido o quanto é importante esta personagem não agir por vaidade, mas por lógica.

No entanto, diante de tudo que foi compartilhado, com ternura e generosidade, como se a senhora fosse a minha professora de literatura, preciso dizer-lhe que guardarei a frase “como nada será conforme o esperado – teremos, ao menos, nos divertido enquanto planejávamos”. Isto é incrível! O que me preocupa é que a senhora falou rindo em meio a uma tosse e outra; tosse, esta, repetida várias vezes em nossos encontros. Espero que já tenha chamado o doutor Edward para avaliar o quadro.

Pois bem, querida Agatha, preciso finalizar a carta, mamãe me chama e está bastante rabugenta desde o dia em que soube da publicação do meu livro no Brasil, terei que viajar para lá em breve. Não havia lhe comentando, na ocasião, mas recebi o convite de uma editora do sul do Brasil, ela se interessou pelo segundo livro da tetralogia. Assim que tudo melhorar, voltarei a Londres. Mattew deve ir comigo, ficou curioso para conhecer a senhora quando eu disse que tomei chá com uma nova amiga e também escritora, porém famosa, chamada Agatha Christie. Ele arregalou os olhos e disse-me: preciso, portanto, levar “O misterioso caso de Styles” para ela autografar.

Até breve, nobre colega.

C.L.

Mulheres em mim

Querida bisavó,
Escrevo-lhe com um lenço à mão. Estou emotiva hoje. Será que podemos nos comunicar através desta carta? Espero que minhas palavras possam alcançá-la no espaço-tempo, de alguma forma, onde estiver.
Faltou tão pouco para nos conhecermos pessoalmente, não é!? Sinto muito por não estar aí antes de partires dessa existência. Me perdoa, antecipei a minha chegada o quanto pude, mas só consegui nascer dois dias após a sua partida. Mas pude senti-la do ventre materno. As emoções da mamãe estavam intensas naquele dia. De certa maneira, a mamãe nos apresentou um tempo depois, ao contar histórias e mostrar fotos da senhora.
Nos momentos em que estou no sítio sinto-me mais conectada com a senhora e a vovó. Contemplo as árvores que plantaram; às vezes até converso com as borboletas e os beija-flores. A vovó dizia: “Quer borboletas no seu jardim? Cuide das flores, que as borboletas e os beija-flores virão por conta própria”. Sabia que era uma orientação também para a vida. Acho que a vovó gostaria de saber que o sítio vem sendo conservado e valorizado pela mamãe, com amor. Quando encontrar a vovó, por favor, conta isso para ela!?
Aliás, lembra das mudas de bananeira e de camélia que a senhora trouxe de uma comunidade vizinha? Ainda estamos colhendo e desfrutando das bananas, cultivadas por ti. A propósito, diz para a vovó que aumentamos a produção das bananeiras por aqui; ela falava que seria desafiador devido à geada, e realmente foi, mas insistimos em plantar várias mudas em lugares diferentes, eis que cresceram em abundância. Quanto aos pés de camélia que a vovó plantou, permanecem aqui. Eu e a mamãe costumamos sentar na sombra dessas árvores para ler um livro, com os pés descalços na grama. É agradável sentir o frescor natural dali.
Bisa, quero dizer que sou grata pelo legado que a senhora e a vovó deixaram e por tê-las comigo, fazendo parte das mulheres da minha ancestralidade. Agradeço especialmente à herança de aspecto invisível, de bem maior, que transcende gerações. Não tenho dúvidas de que carrego em mim a força e a coragem das duas, e, claro, da mamãe. Reconheço as dores e os obstáculos que superaram para que eu pudesse ter a minha vida. Eu as vejo e as honro! Todas tem o seu lugar no meu coração.
Ah, as lágrimas que derramei hoje foram de respeito, de gratidão e da saudade que sinto. Despeço-me por ora. Eu te amo.
Com afeto, sua bisneta.

Carta para minhas ancetrais

Olá, amadas! Como vocês estão?

Tantas novidades por aqui, nem sei por onde começar!

O pai e a mãe estão bem. Voltei a morar com eles, acreditam? Depois dos 40 anos! É estranho voltar para casa depois de tanto tempo fora. Bom, acho que essa é a primeira novidade. Separei. Não, não teve drama. Só não tava mais dando certo. Sei lá. Não fazia mais sentido ficar juntos. O olho não brilhava mais. Não, não teve traição e ele não me batia. Simplesmente não fazia mais sentido. Eu sei, no tempo de vocês não era assim, né? Sei que vocês estão ansiosas com muitas perguntas, mas calma. Eu já disse que tá tudo bem? Tô bem mesmo. Agora tô feliz, sabe? Coração tá tranquilo. Foi a melhor decisão. Não, não tivemos filhos. Só cachorros. Não se ofenda, vó, hoje em dia somos mães de pets. Sim, eles ficam dentro de casa e às vezes em cima da cama. Não, vó, eles tomam banho seguido, eu juro. Tá, tia, a senhora tem razão, não sinto mais o cheiro, o nariz já tá contaminado. Hoje temos uma relação diferente com eles. Antes eles comiam o resto de comida e ficavam do lado de fora. Hoje comem melhor que muita gente. Mas eles nos dão tanto amor. É sério, vó, não me olha assim. Eles são carinhosos e às vezes parecem entender a gente. Se eu vou casar de novo e ter filhos? Olha… Tenho pensado muito nisso. Eu tô me curando. Voltando a ser eu mesma, a me reconhecer, tirando um tempo pra mim. Falei que tô estudando de novo? Sim, uma segunda faculdade, tia. Comecei aula de dança também. Pra quê tudo isso, vó? Eu não me reconhecia mais, sabe? Não sabia mais quem eu era, do que eu gostava. E tá sendo muito legal me redescobrir. Sobre um novo casamento, não descarto. Eu sei que tenho que me amar primeiro e ser suficiente para mim. Sobre filhos… Calma, vó, eu explico. Espera. Respira. Eu não quero. É isso. Não quero. Finalmente eu criei coragem para assumir para mim mesma. Não quero. Ah, posso enumerar vários motivos… a vida corrida, o custo com educação e saúde, o tempo de dedicação… Mas eu simplesmente não quero. O que o pai e a mãe acham disso? Eles já aceitaram. Eles desejam a minha felicidade. Eu sei, vó, quantas mudanças, né? Sim, tô bem mesmo. Eu sei que nunca fui fácil para vocês. As coisas mudaram, que bom. Eu sei que a senhora tá feliz por mim, vó. Obrigada, de coração. Eu sei, tudo vai ficar bem. Saudades, vó. Beijos, tia.

O Legado

Vó Quina!

O destino não permitiu que nos conhecêssemos, no entanto, adoraria que nas lembranças de minha mãe, a senhora estivesse mais presente.
Muitas vezes, a memória dela é uma caixinha de surpresas; quando pensamos que sua filha não se lembra mais dos fatos ocorridos no passado, ela nos conta em detalhes, enquanto outros acontecimentos apagam de sua memória como se nunca houvesse existido – cientificamente, dizem que é normal para quem está com a memória acometido pelo Alzheimer – Ah! Mas, só para a senhora saber, ela está muito bem! principalmente, se considerarmos tudo o que ela passou.
Contudo, acho interessante lhe dizer que ela lembra muito mais do meu avô do que mesmo da senhora. Entretanto, ela só não entende que as recordações que tem da senhora estão num lugar bem seguro – é que, o que aprendemos, ninguém nos tira.
Sabe…eu já sou avó e ficaria enciumadíssima se meus netos lembrassem apenas, ou, mais do avô do que de mim. Então, procuro dar a eles muitas memórias afetivas. Isso não quer dizer que eu realmente serei mais lembrada, mesmo assim, vou deixar algum legado. Estou providenciando para que eles tenham fortes lembranças minha.
Minha mãe recorda-se em detalhes do cuidado que meu avô teve para que ela não se machucasse, inclusive, ela podia escolher entre cuidar dos afazeres domésticos ou acompanhar vocês no trabalho.
Fico curiosa para saber o que a senhora colocava de tempero na comida, pois, das poucas lembranças que sua filha ainda tem, é: além da senhora ter sido uma boa mãe, uma boa pessoa, também cozinhava muito bem – o quanto sua comida era deliciosa.
Sendo assim, gostaria que soubesse que embora alguns detalhes ela não mais consegue mensurar do passado, ela nos contou que foi a senhora que a ensinou costurar, lavar, passar, cozinhar, fazer lindos bordados e outras coisas que uma pessoa boa pode ensinar.
Gostaria que soubesse da minha gratidão por ter passado para sua filha: resiliência, coragem, dedicação e amor.
Vó Quina! A senhora deixou um ótimo legado.

Sua neta

Zilda Cecília Barros

Carta para minha mãe

Mãe,

Eu sei que você deve estar surpresa com esta carta, já que nunca lhe escrevi nem atendi a todos os seus telefonemas. Mas isto aqui é apenas um pedido de perdão, e eu sei que talvez eu não o mereça.

Quando você foi embora, não esperava mais que pudesse voltar. Já faz oito meses que me disseram que você tinha retornado depois de todos esses anos, e a mágoa que a sua falta trouxe não me permitia perdoá-la nem deixar que você voltasse a fazer parte da minha vida.

A tristeza que eu sentia pela sua ausência foi alimentada com as falsas histórias que tia Carmem contava sobre você, transformando a mágoa em raiva, me fazendo acreditar que nasci de um ventre sujo, de uma mulher promíscua que se vendia por prazer de destruir a moral de sua família. Eu era muito novo quando você sumiu, não tinha lembranças de como você era, então preencheram essa lembrança com as imagens das garotas que víamos quando descíamos a Rua Augusta.

Fui muito solitário por todo esse tempo, e a solidão não é um sentimento que crianças deveriam conhecer, mas foi com ela que eu vivi toda a minha vida. Era ela quem preenchia a cadeira vazia na reunião da escola em que só você não estava lá, foi ela que me acolheu quando eu senti a dor do amor não correspondido pela primeira vez.

A tristeza e a solidão endureceram o coração daquela criança que fui um dia, de modo que o mundo à minha volta esfriou, tornou-se cinza. Para fugir da ausência que me atormentava, refugiei-me em meus estudos, agarrei-me a eles com uma determinação ferrenha e, graças a isso, consegui uma bolsa de estudos e fui estudar no Rio. Lá construí minha vida e, nesta última semana de dezembro, quando pensei ter esquecido você, eu assistia à retrospectiva das notícias que foram marcantes e nela anunciavam que oito mulheres vítimas de tráfico sexual foram libertadas de um cativeiro no exterior. Em entrevista ao repórter, uma das mulheres, ainda aos prantos, diz: “Só quero ir para casa, só quero voltar para o meu filho”. Seu nome, Cidália Novais.

Quando vi aquele nome junto ao meu sobrenome, o chão sob meus pés desapareceu, fazendo-me cair em um abismo de dúvidas sobre tudo o que aconteceu até ali. Todos esses anos em que me senti abandonado perderam todo o sentido, culpei-me por acreditar na imagem que me venderam de você. Atormenta-me imaginar tudo o que você passou sem que eu pudesse fazer nada. É com o coração partido, mas ao mesmo tempo feliz, que escrevo esta carta para dizer que estou voltando para nossa casa, voltando para construirmos todos os momentos que roubaram de nós.

Com amor e arrependimento,

Seu filho,

Marcelo.

A CARTA DE ANA

Vó, tudo bem?
Sou a Ana e realizei meu grande sonho: ser mãe. Mas a realidade foi bem diferente do que eu imaginava. A demanda é intensa, e há dias em que a exaustão me consome. Enfrento batalhas diárias: luto por inclusão, discuto com o convênio médico e travo uma guerra silenciosa contra a depressão que me acompanha há anos.

A inclusão só existe no papel, vó. A maioria dos educadores acha que incluir um autista significa apenas deixá-lo frequentar as aulas. Olha como são generosos… É como convidar alguém para a festa, mas proibir que coma e dance.

Não queremos privilégios, buscamos acessibilidade. Queremos que a minha filha se sinta bem, que as crises sejam menos frequentes.

E as crises, vó, são inevitáveis. Para quem é autista, elas fazem parte da vida. O cérebro se sobrecarrega rápido demais, e pouca gente entende o que isso significa de verdade.

“Ela gritou e queria sair da sala.”

É claro que minha menina queria sair, estava em crise. Mas o que muitos não percebem é que pequenas mudanças podem tornar o ambiente mais confortável — não só para os autistas, mas para todos os alunos.

Salas quentes, sem ventilação, podem desencadear crises, por exemplo. Não são apenas os autistas que sofrem com isso, mas, sem dúvida, são os mais afetados. Ainda assim, há quem ache que a inclusão é um fardo.

Percebe, vó, como a inclusão não beneficia apenas as pessoas com deficiência? Estamos falando de gente, não de diagnósticos. Vidas são preciosas. Todos merecem respeito.

“Autista é gente. É óbvio, Ana.”

Mas muita gente esquece disso, vó.

Li, na internet, um comentário que me marcou:

“Por causa dessa lei absurda que obriga as escolas a disponibilizarem profissionais para acompanhar crianças com deficiência, temos que pagar mais caro pela mensalidade. Isso não é justo.”

Sabe o que é justo, vó? Lutar pelo direito universal. Pelo direito de toda criança aprender. Pelo direito de existir sem ser visto como um fardo.

A minha filha não é um fardo. O fardo é o preconceito, a indiferença.

Ela é linda, inteligente e de bom coração. Tem respostas afiadas e raciocínio ligeiro. Sabedoria pura que me enche de orgulho. Por causa dela, estou lutando por um lugar no mundo — porque eu também sou autista.

Nesse espectro, há mães como eu, que não têm sequer o direito de adoecer. Por muito tempo, tentei ser a Mulher-Maravilha. Mas agora… já não sou. E, para ser sincera, não quero mais ser. Estou cansada.

Só queria, por um dia, ser cuidada.

Um único dia sem pensar nas exigências da maternidade, do trabalho… Apenas um dia para ser Ana.

O que as pessoas não percebem é que estou em modo de espera, carregando no vermelho, sem previsão de recarga. E, pior: minha bateria está viciada em remédio.

Já disse ao psiquiatra que quero parar. A medicação só está amortecendo as minhas emoções, e elas precisam de um escape.

Por que não me perco?
Minha filha é luz, e é nela que encontro o caminho.