Naquele tempo, eu ainda não entendia que todo o Homem nasce escravo de algo ou de alguém. Crescia segura no teu apoio, sem perceber que, sem querer, também te acorrentava.
Não sabia como analisar as regras do jogo a que a vida nos sujeita. Perdia-me a olhar as tuas mãos cansadas, que, no pano, corriam e se entregavam ao ponto combinado entre a linha e a agulha da máquina de costura. Não percebia que essas mãos carregavam histórias mais significativas do que toda a História que eu aprendia na escola.
Entregavas-te livremente à servidão para que eu pudesse entregar-me à fantasia e tivesse o direito de sonhar. Permitiste a minha ingenuidade para que minha infância fosse fértil.
Eu não entendia que o duplo sentido nos teus ditados populares e conselhos era um desafio, um incentivo para que eu lesse a meninice que nunca tiveste. Naquela hora calma, quando, já pronta para dormir, lançava um último olhar à tua figura sentada, não reparava que te preparavas para enfrentar um longo e silencioso serão. Ignorava que já tinhas ultrapassado todos os limites das tarefas que alguém pode suportar. Durante a noite, acordava levemente com o som da máquina de costura e adormecia de novo, tranquila, com a tua imagem no andar de baixo.
Conhecia o movimento das tuas pernas inchadas pelo cansaço. Os pés empurravam o pedal da máquina, a correia de cabedal girava, e a roda fazia a agulha penetrar o tecido com um lamento metálico. Sabia que sentirias, por pouco tempo, o descanso da tua cama e que serias a primeira a interromper o silêncio da casa, embrulhada no teu xaile madrugador
.Eu, curiosa como sempre, quando apanhava a máquina a descansar, mal chegando com os pés aos pedais, tentava experimentar a sensação de como seria estar no teu lugar.
Com toda a paciência, ensinaste-me e eu aprendi, mas nunca consegui fazer como tu, com a mesma disciplina com que te sujeitavas.
Hoje sei que viraste muitas vezes a tua existência do avesso para que eu me atrevesse a crescer. Nem sequer reparei na tua idade avançada, quando, mais tarde, me pedias:
— Enfia a linha na agulha. Já me cansa a vista…
Trinta anos após a tua partida, continuo a amar-te.
Gratidão, avó.