O teu esforço

Naquele tempo, eu ainda não entendia que todo o Homem nasce escravo de algo ou de alguém. Crescia segura no teu apoio, sem perceber que, sem querer, também te acorrentava.
Não sabia como analisar as regras do jogo a que a vida nos sujeita. Perdia-me a olhar as tuas mãos cansadas, que, no pano, corriam e se entregavam ao ponto combinado entre a linha e a agulha da máquina de costura. Não percebia que essas mãos carregavam histórias mais significativas do que toda a História que eu aprendia na escola.
Entregavas-te livremente à servidão para que eu pudesse entregar-me à fantasia e tivesse o direito de sonhar. Permitiste a minha ingenuidade para que minha infância fosse fértil.
Eu não entendia que o duplo sentido nos teus ditados populares e conselhos era um desafio, um incentivo para que eu lesse a meninice que nunca tiveste. Naquela hora calma, quando, já pronta para dormir, lançava um último olhar à tua figura sentada, não reparava que te preparavas para enfrentar um longo e silencioso serão. Ignorava que já tinhas ultrapassado todos os limites das tarefas que alguém pode suportar. Durante a noite, acordava levemente com o som da máquina de costura e adormecia de novo, tranquila, com a tua imagem no andar de baixo.
Conhecia o movimento das tuas pernas inchadas pelo cansaço. Os pés empurravam o pedal da máquina, a correia de cabedal girava, e a roda fazia a agulha penetrar o tecido com um lamento metálico. Sabia que sentirias, por pouco tempo, o descanso da tua cama e que serias a primeira a interromper o silêncio da casa, embrulhada no teu xaile madrugador
.Eu, curiosa como sempre, quando apanhava a máquina a descansar, mal chegando com os pés aos pedais, tentava experimentar a sensação de como seria estar no teu lugar.
Com toda a paciência, ensinaste-me e eu aprendi, mas nunca consegui fazer como tu, com a mesma disciplina com que te sujeitavas.
Hoje sei que viraste muitas vezes a tua existência do avesso para que eu me atrevesse a crescer. Nem sequer reparei na tua idade avançada, quando, mais tarde, me pedias:
— Enfia a linha na agulha. Já me cansa a vista…

Trinta anos após a tua partida, continuo a amar-te.

Gratidão, avó.

Carta para minhas ancetrais

Olá, amadas! Como vocês estão?

Tantas novidades por aqui, nem sei por onde começar!

O pai e a mãe estão bem. Voltei a morar com eles, acreditam? Depois dos 40 anos! É estranho voltar para casa depois de tanto tempo fora. Bom, acho que essa é a primeira novidade. Separei. Não, não teve drama. Só não tava mais dando certo. Sei lá. Não fazia mais sentido ficar juntos. O olho não brilhava mais. Não, não teve traição e ele não me batia. Simplesmente não fazia mais sentido. Eu sei, no tempo de vocês não era assim, né? Sei que vocês estão ansiosas com muitas perguntas, mas calma. Eu já disse que tá tudo bem? Tô bem mesmo. Agora tô feliz, sabe? Coração tá tranquilo. Foi a melhor decisão. Não, não tivemos filhos. Só cachorros. Não se ofenda, vó, hoje em dia somos mães de pets. Sim, eles ficam dentro de casa e às vezes em cima da cama. Não, vó, eles tomam banho seguido, eu juro. Tá, tia, a senhora tem razão, não sinto mais o cheiro, o nariz já tá contaminado. Hoje temos uma relação diferente com eles. Antes eles comiam o resto de comida e ficavam do lado de fora. Hoje comem melhor que muita gente. Mas eles nos dão tanto amor. É sério, vó, não me olha assim. Eles são carinhosos e às vezes parecem entender a gente. Se eu vou casar de novo e ter filhos? Olha… Tenho pensado muito nisso. Eu tô me curando. Voltando a ser eu mesma, a me reconhecer, tirando um tempo pra mim. Falei que tô estudando de novo? Sim, uma segunda faculdade, tia. Comecei aula de dança também. Pra quê tudo isso, vó? Eu não me reconhecia mais, sabe? Não sabia mais quem eu era, do que eu gostava. E tá sendo muito legal me redescobrir. Sobre um novo casamento, não descarto. Eu sei que tenho que me amar primeiro e ser suficiente para mim. Sobre filhos… Calma, vó, eu explico. Espera. Respira. Eu não quero. É isso. Não quero. Finalmente eu criei coragem para assumir para mim mesma. Não quero. Ah, posso enumerar vários motivos… a vida corrida, o custo com educação e saúde, o tempo de dedicação… Mas eu simplesmente não quero. O que o pai e a mãe acham disso? Eles já aceitaram. Eles desejam a minha felicidade. Eu sei, vó, quantas mudanças, né? Sim, tô bem mesmo. Eu sei que nunca fui fácil para vocês. As coisas mudaram, que bom. Eu sei que a senhora tá feliz por mim, vó. Obrigada, de coração. Eu sei, tudo vai ficar bem. Saudades, vó. Beijos, tia.

O Legado

Vó Quina!

O destino não permitiu que nos conhecêssemos, no entanto, adoraria que nas lembranças de minha mãe, a senhora estivesse mais presente.
Muitas vezes, a memória dela é uma caixinha de surpresas; quando pensamos que sua filha não se lembra mais dos fatos ocorridos no passado, ela nos conta em detalhes, enquanto outros acontecimentos apagam de sua memória como se nunca houvesse existido – cientificamente, dizem que é normal para quem está com a memória acometido pelo Alzheimer – Ah! Mas, só para a senhora saber, ela está muito bem! principalmente, se considerarmos tudo o que ela passou.
Contudo, acho interessante lhe dizer que ela lembra muito mais do meu avô do que mesmo da senhora. Entretanto, ela só não entende que as recordações que tem da senhora estão num lugar bem seguro – é que, o que aprendemos, ninguém nos tira.
Sabe…eu já sou avó e ficaria enciumadíssima se meus netos lembrassem apenas, ou, mais do avô do que de mim. Então, procuro dar a eles muitas memórias afetivas. Isso não quer dizer que eu realmente serei mais lembrada, mesmo assim, vou deixar algum legado. Estou providenciando para que eles tenham fortes lembranças minha.
Minha mãe recorda-se em detalhes do cuidado que meu avô teve para que ela não se machucasse, inclusive, ela podia escolher entre cuidar dos afazeres domésticos ou acompanhar vocês no trabalho.
Fico curiosa para saber o que a senhora colocava de tempero na comida, pois, das poucas lembranças que sua filha ainda tem, é: além da senhora ter sido uma boa mãe, uma boa pessoa, também cozinhava muito bem – o quanto sua comida era deliciosa.
Sendo assim, gostaria que soubesse que embora alguns detalhes ela não mais consegue mensurar do passado, ela nos contou que foi a senhora que a ensinou costurar, lavar, passar, cozinhar, fazer lindos bordados e outras coisas que uma pessoa boa pode ensinar.
Gostaria que soubesse da minha gratidão por ter passado para sua filha: resiliência, coragem, dedicação e amor.
Vó Quina! A senhora deixou um ótimo legado.

Sua neta

Zilda Cecília Barros

Carta para minha mãe

Mãe,

Eu sei que você deve estar surpresa com esta carta, já que nunca lhe escrevi nem atendi a todos os seus telefonemas. Mas isto aqui é apenas um pedido de perdão, e eu sei que talvez eu não o mereça.

Quando você foi embora, não esperava mais que pudesse voltar. Já faz oito meses que me disseram que você tinha retornado depois de todos esses anos, e a mágoa que a sua falta trouxe não me permitia perdoá-la nem deixar que você voltasse a fazer parte da minha vida.

A tristeza que eu sentia pela sua ausência foi alimentada com as falsas histórias que tia Carmem contava sobre você, transformando a mágoa em raiva, me fazendo acreditar que nasci de um ventre sujo, de uma mulher promíscua que se vendia por prazer de destruir a moral de sua família. Eu era muito novo quando você sumiu, não tinha lembranças de como você era, então preencheram essa lembrança com as imagens das garotas que víamos quando descíamos a Rua Augusta.

Fui muito solitário por todo esse tempo, e a solidão não é um sentimento que crianças deveriam conhecer, mas foi com ela que eu vivi toda a minha vida. Era ela quem preenchia a cadeira vazia na reunião da escola em que só você não estava lá, foi ela que me acolheu quando eu senti a dor do amor não correspondido pela primeira vez.

A tristeza e a solidão endureceram o coração daquela criança que fui um dia, de modo que o mundo à minha volta esfriou, tornou-se cinza. Para fugir da ausência que me atormentava, refugiei-me em meus estudos, agarrei-me a eles com uma determinação ferrenha e, graças a isso, consegui uma bolsa de estudos e fui estudar no Rio. Lá construí minha vida e, nesta última semana de dezembro, quando pensei ter esquecido você, eu assistia à retrospectiva das notícias que foram marcantes e nela anunciavam que oito mulheres vítimas de tráfico sexual foram libertadas de um cativeiro no exterior. Em entrevista ao repórter, uma das mulheres, ainda aos prantos, diz: “Só quero ir para casa, só quero voltar para o meu filho”. Seu nome, Cidália Novais.

Quando vi aquele nome junto ao meu sobrenome, o chão sob meus pés desapareceu, fazendo-me cair em um abismo de dúvidas sobre tudo o que aconteceu até ali. Todos esses anos em que me senti abandonado perderam todo o sentido, culpei-me por acreditar na imagem que me venderam de você. Atormenta-me imaginar tudo o que você passou sem que eu pudesse fazer nada. É com o coração partido, mas ao mesmo tempo feliz, que escrevo esta carta para dizer que estou voltando para nossa casa, voltando para construirmos todos os momentos que roubaram de nós.

Com amor e arrependimento,

Seu filho,

Marcelo.

A CARTA DE ANA

Vó, tudo bem?
Sou a Ana e realizei meu grande sonho: ser mãe. Mas a realidade foi bem diferente do que eu imaginava. A demanda é intensa, e há dias em que a exaustão me consome. Enfrento batalhas diárias: luto por inclusão, discuto com o convênio médico e travo uma guerra silenciosa contra a depressão que me acompanha há anos.

A inclusão só existe no papel, vó. A maioria dos educadores acha que incluir um autista significa apenas deixá-lo frequentar as aulas. Olha como são generosos… É como convidar alguém para a festa, mas proibir que coma e dance.

Não queremos privilégios, buscamos acessibilidade. Queremos que a minha filha se sinta bem, que as crises sejam menos frequentes.

E as crises, vó, são inevitáveis. Para quem é autista, elas fazem parte da vida. O cérebro se sobrecarrega rápido demais, e pouca gente entende o que isso significa de verdade.

“Ela gritou e queria sair da sala.”

É claro que minha menina queria sair, estava em crise. Mas o que muitos não percebem é que pequenas mudanças podem tornar o ambiente mais confortável — não só para os autistas, mas para todos os alunos.

Salas quentes, sem ventilação, podem desencadear crises, por exemplo. Não são apenas os autistas que sofrem com isso, mas, sem dúvida, são os mais afetados. Ainda assim, há quem ache que a inclusão é um fardo.

Percebe, vó, como a inclusão não beneficia apenas as pessoas com deficiência? Estamos falando de gente, não de diagnósticos. Vidas são preciosas. Todos merecem respeito.

“Autista é gente. É óbvio, Ana.”

Mas muita gente esquece disso, vó.

Li, na internet, um comentário que me marcou:

“Por causa dessa lei absurda que obriga as escolas a disponibilizarem profissionais para acompanhar crianças com deficiência, temos que pagar mais caro pela mensalidade. Isso não é justo.”

Sabe o que é justo, vó? Lutar pelo direito universal. Pelo direito de toda criança aprender. Pelo direito de existir sem ser visto como um fardo.

A minha filha não é um fardo. O fardo é o preconceito, a indiferença.

Ela é linda, inteligente e de bom coração. Tem respostas afiadas e raciocínio ligeiro. Sabedoria pura que me enche de orgulho. Por causa dela, estou lutando por um lugar no mundo — porque eu também sou autista.

Nesse espectro, há mães como eu, que não têm sequer o direito de adoecer. Por muito tempo, tentei ser a Mulher-Maravilha. Mas agora… já não sou. E, para ser sincera, não quero mais ser. Estou cansada.

Só queria, por um dia, ser cuidada.

Um único dia sem pensar nas exigências da maternidade, do trabalho… Apenas um dia para ser Ana.

O que as pessoas não percebem é que estou em modo de espera, carregando no vermelho, sem previsão de recarga. E, pior: minha bateria está viciada em remédio.

Já disse ao psiquiatra que quero parar. A medicação só está amortecendo as minhas emoções, e elas precisam de um escape.

Por que não me perco?
Minha filha é luz, e é nela que encontro o caminho.

MEA CULPA

Às cinco em ponto do sol da tarde, meu joelho direito foi ao chão, humilde e respeitoso. Não era a primeira vez que minha mão direita tocava minha testa, depois descia até o peito para cruzar o corpo de ombro a ombro, em sinal de devoção. Mas nunca aquelas paredes pareceram tão altas, nem o caminho até o altar tão sombrio. A cada passo, aumentava ainda mais a minha angústia: eu precisava urgentemente de um pecado.
Sentei-me na segunda fileira, bem em frente a Santa Inês. Sob sua imagem sorridente a segurar uma palma, estava a porta da sacristia, onde me aguardava o Padre Solano. Há seis meses eu conhecia sua voz animada e gentil de sacerdote jovem, eram dele as aulas mais divertidas da catequese de freiras sonolentas e missas obrigatórias. Mas naquele instante, Padre Solano seria Deus ouvindo meus pecados, e isso era assustador. E eu precisava contar a ele de meus pecados – era um passo necessário para que, na manhã seguinte, eu estivesse de calça de tergal azul e camisa branca bordada com os símbolos eucarísticos, recebendo a hóstia consagrada pela primeira vez.
Esperando pelo chamado, ergui os olhos e vi uma vez mais o enorme crucifixo sobre o altar. Os olhos do Cristo pareciam compreender todo meu drama dos últimos dias – eu havia lido minha Bíblia para Crianças e marcado com canetinha os Dez Mandamentos, mas nenhuma luz, nada, nem uma ideia sequer. Lembro que a inspiração veio pouco antes do Padre Solano abriu a porta – eu menti!
Sim, tinha sido um falso testemunho, daqueles com implicações para a vida do próximo e tudo o mais: era aniversário de minha mãe e eu juntei umas poucas moedas da minha mesada e escolhi – sabe Deus o porquê – um LP do Peninha, um cantor romântico que, na ingenuidade de meus nove anos de idade, pensei ser o presente ideal para ela; minha mãe abriu o embrulho com curiosidade e senti no ato o meu erro; no dia seguinte, fui na loja de discos e pedi para trocarem o presente – a atendente recusou-se, disse que não se trocava LP a não ser no caso de defeito, e ainda sugeriu que eu tinha gravado as músicas em fita cassete e agora tentava conseguir outro LP na esperteza; sei que cheguei em casa chorando e contei o ocorrido com as cores fortes de minha frustração; no dia seguinte, minha tia armou-se de fúria e foi tirar satisfações do lojista que teria me chamado de mentiroso; ganhei um novo LP e um remorso que me seguiria até a véspera de minha Primeira Comunhão.

[Robertson Frizero]