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Mãe,
Surgiu assim um diálogo em mim. Eu e eu enquanto lavava louça. Como sempre, pia cheia, água e sabão mexem minhas entranhas e muitas das minhas histórias.
Por que me submeti a viver tais situações? Só de pensar sinto raiva de mim mesma. E dos outros também. O que diria Kant? O que pode um filósofo saber e se pronunciar sobre um pobre ser igual a mim?
Você não pode falar assim de uma criatura. Criada por livre opção e desejo do Criador. O universo parou e decidiu sua pessoa. Aqui eu ainda filosofando.
Acho graça de tanta pensação. De vantagem, a pia até esvazia um pouco.
Daí pensei na senhora, mãe. Certo que não se julgava digna das reflexões de filósofo nenhum. Um sorriso tão simples e sincero. Acolhedora nos seus cafés, arroz novinho ou chegando de repente para ficar com o bebê. Socorrendo e tirando do sufoco. Ah… quantas coisas para entregar ao Kant e ele pensaria, pensaria – “que ser é esse?”
A criatura nasceu num paraíso. Praia, mata virgem, peixe fresco, frutas, farinha, tudo em fartura. Morava com os pais na Casa de Farinha. Ali ficava a moenda. Onde se trabalhava a mandioca. Os vizinhos vinham e ajudavam a girar apertando o tipiti até sair todo líquido. Trabalho, esforço, alegria e amizade. As famílias de posses dispunham de bois que giravam e giravam. Mais fácil, mas sem as vozes e os encontros calorosos da amizade.
Num comecinho de noite para terminar o serviço, o pai João Bernardes, pescador, trazedor de peixe fresco, resolveu girar a moenda sozinho. Ela escapou e ele, ferido gravemente, faleceu. A viúva sozinha entregou a filha para a madrinha criar. Antes a menina ficou na casa de um, de outro e de outro. Uma professora a amava muito, mas iria se casar e seguiria seu caminho somente com o marido.
E Kant ainda caminhando de um lado para outro filosofava. Buscava entender tal fenômeno – “que ser é esse?”. Sim, mãe, filósofos estudariam, pensando e pensando, “pode uma criatura ser gerada em inteligência emocional com tanta riqueza, tendo vida tão adversa?”
O adverso gerou a riqueza emocional capaz de forjar uma mulher que nem uma vez se ouviu mencionar palavra de crítica a outra pessoa, nem àquelas por onde passou a infância, a adolescência e a juventude. Talvez o silêncio e o escuro da noite que em descanso faz sonhar. O alimento simples e necessário. As conversas dos adultos sempre ao redor da mesa. Olhar o céu cheio de estrelas. Tudo fez, mãe, a senhora depois plantar canteiros de copos-de-leite, lírios brancos e cravinas. Colher verduras, tomates e milho verde em terreno arenoso bem cuidado. E enfrentar dignamente a vida na cidade, criando seus enteados e filhos.
Com seu silêncio cuidou das filhas, que também precisaram morar distante. Chegávamos, estávamos em casa. Aconchegadas.
Mãe, hoje, dia da Mulher, pensei muito na senhora.
Com saudade. Respirando leve com este feliz reencontro.