Depois que aquela mancha, (aquela sombra, na verdade) me tocou, nunca mais fui o mesmo. Nunca mais tive controle total sobre minhas ações, o que cooperou para uma má relação com meus pais.

Terminamos de jantar e papai já estava com a cara enfiada nos tabloides, era o único que ainda não havia deixado a mesa. O jornal o escondia, deixando à mostra os dedos das mãos que o seguravam pelas bordas. Mamãe, depois de coar todo o café, o serviu em xícaras sem alça (exatamente aquelas que comprara no Líbano quando viajamos no último verão) e depositou-as no tampo da mesa de cedro. Papai baixou o jornal no mesmo instante e foi sentir aquele aroma delicioso.

— Eu amo café — disse ele após inspirar profundamente. — Mas como o cheiro consegue ser melhor que o gosto?

— É verdade. — Mamãe sorriu. Depois voltou à cozinha para pegar o açucareiro.

Papai não resistiu à travessura de bater com o cigarro na borda da xícara, fazendo-a de cinzeiro para jogar um pouco da cinza dentro. Quando mamãe retornou, ele adicionou uma colher do mascavo e misturou tudo. Afinal, quem nunca? Eu mesmo faço isso até hoje. Mas toda vez que minha mãe o pegava fazendo, ela o repreendia.

— Sempre se empolgava enquanto eu preparava o café — disse ela para mim —, agora não gosta mais?

— Não quero — eu disse, com algo gritando dentro de mim para ser ríspido, mas eu consegui controlar desta vez. Sem ainda olhar para ela, agradeci. — Obrigado.

Permaneci de cócoras. Continuei a brincar com meus Legos. Sem precisar me virar, já sabia que mamãe estava à beira do choro e papai a consolá-la. Ouvi o arrastar de cadeira e passos em direção à cozinha, depois o barulho de louça sendo deixada na pia. Mamãe havia abandonado seu café e subiu para seu quarto.

— Rian? — meu pai me chamou. Continuei agachado, apenas virei o pescoço para olhá-lo. — Sua mãe ficou triste.

— Mas… a tratei mal?

— Claro que não — afirmou ele. — Se o fizesse, teria sido esbofeteado, sabe disso. — Papai sabia ser ignorante, o que me fez odiá-lo por muito tempo. — Mas o problema é o descaso com tudo que ela faz por você.

— Desculpe — limitei a dizer. E voltei a empilhar os brinquedos. Senti meu pai decepcionado, esperando muito mais que uma desculpa em tom displicente. Ele voltou ao que estava fazendo. Após um tempo, me levantei, fui até a mesa, passei a mão por cima da xícara ilustrada, e uma gota de sombra saiu da ponta de meus dedos e mergulhou, sem barulho algum e unificando-se ao café.

Escutei a chuva lá fora e fui à janela para admirá-la. Amávamos quando chovia, principalmente no inverno quando arrefece mais.

Meu pai se agradou da chuva e tomou um gole do seu café. Continuei a apreciar o tempo lá fora enquanto os olhos de meu pai escureciam como duas azeitonas pretas. Como se estivesse hipnotizado, ele subiu as escadas. Não demorou muito para que os gritos da minha mãe se misturassem aos trovões lá fora.

 


Curadoria: Lourenço Moura


Foto de samer daboul no Pexels

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