Nasci, violentamente, em meados do seco e quente mês de agosto. Fui arrancada do ventre de minha mãe e nenhum anjo veio para cantar o “Aleluia.”
Deveria. Só um não! Uma legião. Considerando que meu nascimento quase se tornou uma tragédia. Por muito pouco não morri antes de dar o ar da graça. E de quebra, ainda levaria minha mãe para dar testemunho da desgraça, lá no paraíso.
O parto estava atrasado dois longos dias. Culpa de meu pai que não se adiantou em buscar a parteira. Não me mexia mais. Minha mãe, mais morta do que viva, já não tinha forças para me ajudar a sair. A parteira praticamente me buscou dentro do ventre com as mãos — eu estava sentada. Fui puxada pela perna esquerda que precisou ser deslocada da bacia. Dizem que não foi preciso me bater, eu nasci gritando. Com certeza era de dor.
A parteira não conseguiu encaixar minha perna novamente, uma cresceu mais que a outra. Demorei a andar, não conseguia me sustentar em pé, arrastei-me pelo chão até os quatro anos quando aprendi a andar imitando minha irmã que, com dois anos, já corria para todos os cantos da fazenda.
Eu tinha uma irmã mais velha e outra mais nova e, ainda na prematuridade da infância, minha mãe nos levou embora para a cidade. Saímos escondidas de meu pai que, depois de tomar umas e todas, ficava valente e afoito. Nós, as mulheres da casa, virávamos saco de pancadas. A solução que minha mãe encontrou foi fugir com as filhas.
Na cidade, moramos um tempo com uma prima distante, num quartinho improvisado. Quase não via mamãe, ela trabalhava à noite e, às vezes, durante o dia. Um tempo depois, fomos morar numa casa com um quintal enorme e muitos quartos. Cada quarto tinha um número e em cada um morava uma mulher. Minha mãe conhecia todas elas.
Da nossa casa para o quintal, havia um muro bem alto com um portão enorme. Só podíamos ir ou brincar no quintal, uma vez na semana, quando todas as mulheres saíam para fazer compras e não recebiam visitas. Nos outros dias, brincávamos na frente da casa ou na pracinha.
Todas as visitas tinham que pedir permissão a minha mãe para entrarem nos quartos e ela anotava em um livro o número do quarto para o qual a visita estava indo. Quase todas as visitas eram homens. Alguns vinham sempre e outros só de vez em quando.
— Que maravilha! Comemorava, minha mãe, todos os dias pela manhã, quando as mulheres vinham lhe pagar o aluguel dos quartos.
Embora ganhasse muito dinheiro, minha mãe sempre reclamava que não era o suficiente para terminar a construção de sua mansão.
Demorei anos para entender, porque minha mãe achou melhor que eu e minhas irmãs fôssemos morar com outras famílias e nunca mais as vi.
Eu fui viver com Dona Leonor. Ela era esperta, mas não conseguiu esconder de mim, que a escutava atrás da porta, que me comprara quando eu tinha cinco anos, por cinco mil reais.
Curadoria: Lourenço Moura
11 respostas
Que conto é esse que mexe com o emocional, agita alma! Na mente um turbilhão de pensamentos, inquietação, tristeza, entre outras emoções! Muito bem relatado! Parabéns Osana!
Que bom que gostou! obrigada.
Uma realidade vivida assim deixa muitas marcas, e a forma que escreveu e fascinante parabéns.
Oi Cida, obrigada pelo comentário, bjs
Vitória por nocaute! Parabéns Osana.
Olá, Anthony, obrigada!
Parabéns Osana, a sua alma estava nesse conto!
Olá, Virginia, com certeza!
Meu Deus, o que dizer diante dessa ficção mais real do que merece ser? Parabéns Osana, um texto forte e intenso que diz muito mais do que está escrito.
É isso mesmo, Marcelo, tem muita história nas entrelinhas. Obrigaada
Olá pessoal, obrigada pelo retorno de vocês, é muito gratificante para o escritor saber que foi lido e, melhor ainda, é quando gostam, do que foi lido. Este conto, na verdade, é uma adaptação de um romance que estou escrevendo. Aguardem!