Há mais tempo do que merecia ter envelhecido o relato, vi . Uma rainha de passagem por avenida de minha ilha-cidade. Não a rainha britânica, embora seu cabelo também fossem caracóis anêmicos. Tampouco Ana Bolena, a de Sabá, ou rainhas do naipe. Era, sim, a monarca dum reino ignóbil, cercado por muros raramente transpostos. Assentada sobre trono cuja rota sequência de degraus eram pés de uma esquálida movelaria, a dama, a caráter, exibia fúnebres variações de cinza e marrom em seu traje, bem aos tons da calçada. Cobrindo as anáguas, primoroso recato, profuso retorcido de panos em claro-escuro barroco frustrava os ventos matinais, furiosos na ocasião. O esplendor da senhora, enfim, sobremaneira excedia o dos cavalheiros estirados no mármore, ao redor.  No conjunto, ela se erigia, honrosamente envergada, seu cheiro destilando passantes que se aproximavam, passantes que não. Único traço de falibilidade, como leito dum rio abatido, sua pele denunciava a idade avançada. Raios de sol pincelavam-na, refletindo na fuligem brilhante e no espírito sem brilho.

Perdida em plácidos pensamentos, perscrutava o Leste. Melancólica, num descuido, cedeu-me o olhar, deixando entrever o que via. Dívidas. Decepções. Planos mortos. Palavras de morte. O homem. O medo. A aurora, do berço dourado, falava com a mulher, que comigo falava através de seus olhos.

Pobre coitada, pensei. Seu borborigmo era o amassar de papeis que ela quis escrever, encenar, mas que escaparam das mãos, então estendidas, não para serem beijadas. Não lhe restara papel senão o de mendigar tempo para esquecer.

Mas eu logo esqueceria. Nunca mais veria a distinta figura, apesar de casadas minha rotina e a avenida. Decerto, o estica e encolhe de sua sombra corcunda à luz do sol encontrou a pausa da ampulheta. A mulher partiu. E ninguém se importou se ela pôde esquecer.


Curadoria: Lourenço Moura


Foto de Paul Kerby Genil no Pexels

 

 

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