Meu irmão mais novo já estava no berço. Minha irmã mais velha vinha da cozinha com uma caneca de achocolatado e biscoitos. Eu continuei brincando na sala com meus bonecos. Eles estavam em dois grupos lutando para ver quem iria ocupar o lugar na primeira prateleira do rack. A luta já tinha começado de manhã cedo, — Por isso não fui à escola, o que achei muito bom — de manhã houve bombas, armas grandes e pesadas e até helicóptero — Eu gosto de olhar! Ele passa pertinho das casas então nem precisei imitar o barulho dessa vez.
Meu pai chegou do trabalho suado e nervoso. Ele reclamou que precisou ficar no pé do morro desde a tarde, esperando o tiroteio passar. Isso era muito chato já que o jogo do Botafogo que passava na TV estava quase acabando. Enquanto ela assistia, eu continuei com meus bonecos. Foi quando ouvi uma rajada. Olhei pela janela e vi traçantes. Papai fechou logo as cortinas e mandou todo mundo para cama. Minha irmã reclamou alguma coisa e foi para nosso quarto. Eu deixei meus bonecos no chão. Mesmo depois de um dia inteiro, nenhum deles tinha vencido a batalha. Pelo jeito, vou ter que continuar a guerra amanhã.
Curadoria: Lourenço Moura
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6 respostas
Ah, que crônica bacana (apesar da realidade cruel), é claro que me refiro a forma bem elaborada da autora em nos mostrar o mundo infantil superposto à dureza de uma vida vivida em meio ao caos urbano (suburbano) que cerca as metrópoles do mundo. Parabéns.
Crianças absorvem o que o ambiente lhes proporciona. Brincando, expõem com pureza e inocência suas ficções diante da realidade dos adultos.
Será que a batalha travada no cotidiano do que restou dos morros é reflexo da sensibilidade infantil? Ou é apenas desculpa injustificada dos amigos do alheio?
Parabéns. Texto sobre a triste sociedade nua e crua.
Que sutileza incrível! Adorei! A criança de uma inocência tão pura em meio a um ambiente tão caótico e incerto. Ótimo texto! Parabéns, Vaneza!
Entre o real e o faz de conta. Qual dos estados deixará mais marcas no futuro da criança?
Ainda que a forma de encarar a realidade seja transformá-la em brincadeira, não significa que ele, o protagonista, não reserve dentro de si um espaço para guardar um bomba emocional que rebentará mais tarde. Gratidão pelo tema que trouxe. Ele nos leva à nossa ou à infância de outras crianças que conhecemos. Abraço.
Vaneza, gostei bastante do seu narrador menino! Me fez lembrar do livro “Bom dia, camaradas” do escritor angolano Ondjaki.
Encantado com a sutileza. Parabéns!!!