Numa escolha que demorou a ser feita, Virgínia Heitor assassinou aquele homem numa encruzilhada. Com a premeditação de uma profissional, programou o convite que lhe faria para ir a um lugar ermo, a respectiva desculpa para o evento, a forma correta do assassinato e o método de disposição do corpo. Fê-lo, já se disse, com a correção a que se exigiu, e foi-se embora, ciente da imensa improbabilidade de alguma vez ser acusada.

No dia seguinte, só depois de instalado o alívio que prometera a si mesma pelo desaparecimento do homem, pois isto dos grandes eventos sempre nos traz um quê de dúvida sobre a sua realidade, Virgínia Heitor fechou os olhos dentro da casa silenciosa e relembrou o momento em que o corpo, esvaído em sangue, parara de se mexer. Ali estava ela, testemunha do início da sua eterna quietude, e não sentiu nada. Estranhou.

Pegou no caderno onde escrevinhava as listas de supermercado e escreveu umas quadras, ― Ai que a alma se fora dela agora que matara! Perdera a humanidade assim tão nova! Viveria na bruma do homicídio daí para a frente! Quão mal se sentia… Tão enorme pecado!

Não, não era verdade. A tentativa de se humanizar com a poesia fora mal sucedida. Era noite, Virgínia Heitor escolheu o shampoo de alfazema, tomou um relaxante banho de água morna e dormiu relaxadamente por oito horas.

 

 

11 respostas

  1. Entendi que a personagem livrou-se de alguém que lhe fez tanto mal a merecer a pena capital, só assim aliviando o sofrimento que pesava em sua vida. O finado foi eliminado por confiar no convite feito por quem amargava dores de suas atitudes. Porém, como não há crime perfeito, fica a dúvida sobre como será a vida da assassina após esse primeiro descanso. Excelente texto. Parabéns.

  2. É um texto inquietante que nos traça um personagem que, apesar da conduta pragmática e premeditada, mostra um desequilíbrio que foge as regras morais que regem um sociedade sadia. O pior de tudo é pensar que o germe de um ser humano perfeitamente capaz das maiores atrocidades vive em qualquer um. Virgínia Heitor pode ser uma protagonista de ficção literária, mas também pode ser aquele que habita em nós e não conhecemos do que somos capazes.

  3. A inquietante Virginia Heitor, fria e calculista, deixa um frio na alma, um susto no olhar, e um medo enorme de encontrá-la. Sabe-se lá se você pode ser o corpo inerte antes do shampoo de alfazema ser usado?

  4. Ótimo texto! Gostei muito mesmo! Sutileza e clareza na medida exata. Fez-me divagar relacionando figurativamente a vivências, não pelo homicídio, o qual seria incapaz, mas quem nunca assassinou sentimentos e emoções? Em legítima defesa, claro, rs. Parabéns Lourenço! Um dia quero escrever assim, rs.👏🏻👏🏻👏🏻

  5. E será que a alfazema (lavanda) conseguirá acalmar Virgínia Heitor, tirá-la da depressão? Adoro textos que fazem pensar. Parabéns, Lourenço!

  6. Muito bom o texto, em meu entendimento, o homem ao qual ela assassinou a oprimia de alguma forma, e ela se livrou dele de uma forma que para muitos é cruel, demonstrando um ato de profunda maldade, mas para ela significou a liberdade, Depois do ocorrido tomou um banho que a relaxou por oito horas, Nós leitores ficamos com aquela sede se saber do depois? Parabéns pelo texto Lorenço!👏👏

  7. Uma mulher macabra, perturbada, angustiada e ao mesmo tempo aliviada. O que a teria levado a cometer este crime? Qual a história que envolve esta mulher? Ótimo texto, Lourenço, parabéns!

  8. Dúvida breve: condenar-se ou seguir em frente? Decidida à não hipocrisia do falso arrependimento, banhou-se com outro perfume e guardou dentro de si, a parte malvada. Presumo que continuou vivendo como se tivesse sido outra a cometer o crime. Quantas vezes já não fomos outros, atores de ações menos gloriosos, bem diferentes daquelas que gostamos mostrar ao mundo? Quantos seres já assasinamos com palavras e atos? Lourenço, parabéns pelo texto.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *